LITERATURA - MACUNAÍMA: ANÁLISE




Por que 'Macunaíma', lançado há 90 anos, é muito mais do que um livro de vestibular


"Pouca saúde e muita saúva, os males do Brasil são" - esse slogan de Macunaíma pode ajudar a explicar metaforicamente o país até hoje. Mas não é só isso que faz a grandeza dessa obra-prima, o romance rapsódia Macunaíma - O herói sem nenhum caráter, que o modernista Mário de Andrade (1893-1945) publicou em 1928.

O escritor criou um anti-herói marginal que nasce com preguiça na Amazônia e apronta tantas traquinagens que acaba abandonado pela mãe. Macunaíma é erotizado e, a todo custo, busca prazeres sexuais. Ainda na floresta, ele ganha um talismã indígena, a muiraquitã. Depois perde a pedra e então viaja para São Paulo e Rio de Janeiro a fim de tentar recuperá-la. No percurso, o protagonista - que nasce negro e vira branco - vive peripécias e confusões, revelando suas falhas de caráter.

"O livro reúne uma vasta pesquisa da linguagem, das práticas narrativas e das músicas, das falas, ditos, contos e cantos populares do Brasil", enumera o antropólogo Paulo Santilli, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp).

 

(...) A primeira edição, com 283 páginas, foi impressa nas Oficinas Gráficas de Eugenio Cupolo, em São Paulo. Saiu do prelo em 26 de julho de 1928 e, nos meses seguintes, foi assunto entre os principais expoentes da cultura nacional. "A obra apresentou uma grande renovação estética. E isso provocou uma reação irada da crítica conservadora", diz Santilli.

"É um marco do modernismo, o primeiro movimento literário realmente brasileiro. Essa é uma questão eterna para um país que surge do encontro - ou desencontro - de centenas de etnias indígenas e africanas, por causa da colonização europeia. Um país que é miscigenado, que se ama e se odeia por isso", comenta a antropóloga Deborah Goldemberg.

(...) Em 1969, Macunaíma virou filme - dirigido por Joaquim Pedro de Andrade (1932-1988) e com Grande Otelo (1915-1993) no papel principal. A obra é considerada pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema como uma das cem melhores da filmografia nacional.


(...) Mário de Andrade costumava dizer que escreveu Macunaíma em apenas seis dias - "deitado na rede em Araraquara", frisa o poeta e crítico literário Frederico Barbosa. "No entanto, a obra revela uma enorme pesquisa e profunda reflexão do escritor sobre a identidade nacional. Ou seja, demorou muito tempo para ser gestada, embora tenha saído de forma bastante natural ao ser escrita."

(...) "É erudição com naturalidade e humor. É muito sério em sua essência, mas muito engraçado e divertido na leitura. Em outras palavras, Macunaíma é, antes de tudo, uma obra gostosa de se ler que abre um vasto leque de reflexões sobre nossa identidade nacional", explica.
"Segue sendo importante porque diz muito do Brasil do início deste século e também do século passado", afirma Santilli.

"A maestria de Mário de Andrade ao mesclar a língua coloquial e a escrita demonstra a distância entre esses falares e confere um efeito estético. Essa trama ilustra a distância tanto no léxico quanto na política entre as elites e a população. Significa muito mais do que as listas de vestibulares. É um livro necessário para compreender o Brasil, a riqueza e a diversidade linguística e cultural do Brasil, e ao mesmo tempo a mediocridade e a avidez mesquinha da elite que marca a história do Brasil."

"Noventa anos depois, continuamos buscando uma identidade cultural nacional, algo que nos una enquanto nação. Mas continuamos divididos e sem conhecer nossa história - o que pode ajudar a entender todas as tensões atuais", comenta o editor e poeta Eduardo Lacerda.

Mário de Andrade

"Eu sou trezentos, sou trezentos e cinquenta" é a frase do escritor Mário de Andrade que melhor define sua multiplicidade de interesses e de talentos.
Poeta, escritor, crítico literário, musicólogo, historiador da arte, folclorista e ensaísta, ele gostava de ir a campo em busca das experiências dos brasileiros reais. Foi uma das mentes por trás da Semana de Arte Moderna de 1922, que deu início ao movimento Modernista e mudou a arte no país.

Em 1935, tornou-se diretor-fundador do Departamento de Cultura de São Paulo, um órgão que seria o embrião da atual Secretaria de Cultura. Em 1937, quando o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) foi criado, Mário de Andrade foi incumbido de peregrinar pelo interior paulista a fim de identificar e mapear tudo aquilo que merecia ser protegido como bem cultural no Estado.

Nessas viagens, ele acabou se tornando o primeiro a olhar com interesse histórico para as hoje reconhecidas "casas bandeiristas", construções coloniais paulistas pobres e rudimentares, de estruturas simples e feitas de taipa de pilão. "Casas velhas", era como o poeta as chamava - sem que isso fosse algum demérito, muito pelo contrário.

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