LITERATURA
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NEGRINHA
Monteiro Lobato
Negrinha era uma pobre órfã
de sete anos. Preta? Não; fusca, mulatinha escura, de cabelos ruços e olhos
assustados.
Nascera na senzala, de mãe
escrava, e seus primeiros anos vivera-os pelos cantos escuros da cozinha, sobre
velha esteira e trapos imundos. Sempre escondida, que a patroa não gostava de
crianças.
Excelente senhora, a patroa.
Gorda, rica, dona do mundo, amimada dos padres, com lugar certo na igreja e
camarote de luxo reservado no céu. Entaladas as banhas no trono (uma cadeira de
balanço na sala de jantar), ali bordava, recebia as amigas e o vigário, dando
audiências, discutindo o tempo. Uma virtuosa senhora em suma — “dama de grandes
virtudes apostólicas, esteio da religião e da moral”, dizia o reverendo.
Ótima, a dona Inácia.
Mas não admitia choro de
criança. Ai! Punha-lhe os nervos em carne viva. Viúva sem filhos, não a
calejara o choro da carne de sua carne, e por isso não suportava o choro da
carne alheia. Assim, mal vagia, longe, na cozinha, a triste criança, gritava
logo nervosa:
— Quem é a peste que está
chorando aí?
Quem havia de ser? A pia de
lavar pratos? O pilão? O forno? A mãe da criminosa abafava a boquinha da filha
e afastava-se com ela para os fundos do quintal, torcendo-lhe em caminho
beliscões de desespero.
— Cale a boca, diabo!
No entanto, aquele choro nunca
vinha sem razão. Fome quase sempre, ou frio, desses que entanguem pés e mãos e
fazem-nos doer...
Assim cresceu Negrinha —
magra, atrofiada, com os olhos eternamente assustados. Órfã aos quatro anos,
por ali ficou feito gato sem dono, levada a pontapés. Não compreendia a idéia
dos grandes. Batiam-lhe sempre, por ação ou omissão. A mesma coisa, o mesmo
ato, a mesma palavra provocava ora risadas, ora castigos. Aprendeu a andar, mas
quase não andava. Com pretextos de que às soltas reinaria no quintal, estragando
as plantas, a boa senhora punha-a na sala, ao pé de si, num desvão da porta.
— Sentadinha aí, e bico,
hein?
Negrinha imobilizava-se no
canto, horas e horas.
— Braços cruzados, já,
diabo!
Cruzava os bracinhos a
tremer, sempre com o susto nos olhos. E o tempo corria. E o relógio batia uma,
duas, três, quatro, cinco horas — um cuco tão engraçadinho! Era seu
divertimento vê-lo abrir a janela e cantar as horas com a bocarra vermelha,
arrufando as asas. Sorria-se então por dentro, feliz um instante.
Puseram-na depois a fazer
crochê, e as horas se lhe iam a espichar trancinhas sem fim.
Que idéia faria de si essa
criança que nunca ouvira uma palavra de carinho? Pestinha, diabo, coruja,
barata descascada, bruxa, pata-choca, pinto gorado, mosca-morta, sujeira,
bisca, trapo, cachorrinha, coisa-ruim, lixo — não tinha conta o número de
apelidos com que a mimoseavam. Tempo houve em que foi a bubônica. A epidemia
andava na berra, como a grande novidade, e Negrinha viu-se logo apelidada assim
— por sinal que achou linda a palavra. Perceberam-no e suprimiram-na da lista.
Estava escrito que não teria um gostinho só na vida — nem esse de personalizar
a peste...
O corpo de Negrinha era
tatuado de sinais, cicatrizes, vergões. Batiam nele os da casa todos os dias,
houvesse ou não houvesse motivo. Sua pobre carne exercia para os cascudos,
cocres e beliscões a mesma atração que o ímã exerce para o aço. Mãos em cujos
nós de dedos comichasse um cocre, era mão que se descarregaria dos fluidos em
sua cabeça. De passagem. Coisa de rir e ver a careta...
A excelente dona Inácia era
mestra na arte de judiar de crianças. Vinha da escravidão, fora senhora de
escravos — e daquelas ferozes, amigas de ouvir cantar o bolo e estalar o
bacalhau. Nunca se afizera ao regime novo — essa indecência de negro igual a
branco e qualquer coisinha: a polícia! “Qualquer coisinha”: uma mucama assada
ao forno porque se engraçou dela o senhor; uma novena de relho porque disse:
“Como é ruim, a sinhá!”...
O 13 de Maio tirou-lhe das
mãos o azorrague, mas não lhe tirou da alma a gana. Conservava Negrinha em casa
como remédio para os frenesis. Inocente derivativo:
— Ai! Como alivia a gente
uma boa roda de cocres bem fincados!...
Tinha de contentar-se com
isso, judiaria miúda, os níqueis da crueldade. Cocres: mão fechada com raiva e
nós de dedos que cantam no coco do paciente. Puxões de orelha: o torcido, de
despegar a concha (bom! bom! bom! gostoso de dar) e o a duas mãos, o sacudido.
A gama inteira dos beliscões: do miudinho, com a ponta da unha, à torcida do umbigo,
equivalente ao puxão de orelha. A esfregadela: roda de tapas, cascudos,
pontapés e safanões a uma — divertidíssimo! A vara de marmelo, flexível,
cortante: para “doer fino” nada melhor!
Era pouco, mas antes isso do
que nada. Lá de quando em quando vinha um castigo maior para desobstruir o
fígado e matar as saudades do bom tempo. Foi assim com aquela história do ovo
quente.
Não sabem! Ora! Uma criada
nova furtara do prato de Negrinha — coisa de rir — um pedacinho de carne que
ela vinha guardando para o fim. A criança não sofreou a revolta — atirou-lhe um
dos nomes com que a mimoseavam todos os dias.
— “Peste?” Espere aí! Você
vai ver quem é peste — e foi contar o caso à patroa.
Dona Inácia estava azeda,
necessitadíssima de derivativos. Sua cara iluminou-se.
— Eu curo ela! — disse, e
desentalando do trono as banhas foi para a cozinha, qual perua choca, a rufar
as saias.
— Traga um ovo.
Veio o ovo. Dona Inácia
mesmo pô-lo na água a ferver; e de mãos à cinta, gozando-se na prelibação da
tortura, ficou de pé uns minutos, à espera. Seus olhos contentes envolviam a
mísera criança que, encolhidinha a um canto, aguardava trêmula alguma coisa de
nunca visto. Quando o ovo chegou a ponto, a boa senhora chamou:
— Venha cá!
Negrinha aproximou-se.
— Abra a boca!
Negrinha abriu aboca, como o
cuco, e fechou os olhos. A patroa, então, com uma colher, tirou da água
“pulando” o ovo e zás! na boca da pequena. E antes que o urro de dor saísse,
suas mãos amordaçaram-na até que o ovo arrefecesse. Negrinha urrou surdamente,
pelo nariz. Esperneou. Mas só. Nem os vizinhos chegaram a perceber aquilo.
Depois:
— Diga nomes feios aos mais
velhos outra vez, ouviu, peste?
E a virtuosa dama voltou
contente da vida para o trono, a fim de receber o vigário que chegava.
— Ah, monsenhor! Não se pode
ser boa nesta vida... Estou criando aquela pobre órfã, filha da Cesária — mas
que trabalheira me dá!
— A caridade é a mais bela
das virtudes cristas, minha senhora —murmurou o padre.
— Sim, mas cansa...
— Quem dá aos pobres
empresta a Deus.
A boa senhora suspirou
resignadamente.
— Inda é o que vale...
Certo dezembro vieram passar
as férias com Santa Inácia duas sobrinhas suas, pequenotas, lindas meninas
louras, ricas, nascidas e criadas em ninho de plumas.
Do seu canto na sala do
trono, Negrinha viu-as irromperem pela casa como dois anjos do céu — alegres,
pulando e rindo com a vivacidade de cachorrinhos novos. Negrinha olhou
imediatamente para a senhora, certa de vê-la armada para desferir contra os
anjos invasores o raio dum castigo tremendo.
Mas abriu a boca: a sinhá
ria-se também... Quê? Pois não era crime brincar? Estaria tudo mudado — e findo
o seu inferno — e aberto o céu? No enlevo da doce ilusão, Negrinha levantou-se
e veio para a festa infantil, fascinada pela alegria dos anjos.
Mas a dura lição da
desigualdade humana lhe chicoteou a alma. Beliscão no umbigo, e nos ouvidos, o
som cruel de todos os dias: “Já para o seu lugar, pestinha! Não se enxerga”?
Com lágrimas dolorosas,
menos de dor física que de angústia moral — sofrimento novo que se vinha
acrescer aos já conhecidos — a triste criança encorujou-se no cantinho de
sempre.
— Quem é, titia? — perguntou
uma das meninas, curiosa.
— Quem há de ser? — disse a
tia, num suspiro de vítima. — Uma caridade minha. Não me corrijo, vivo criando
essas pobres de Deus... Uma órfã. Mas brinquem, filhinhas, a casa é grande,
brinquem por aí afora.
— Brinquem! Brincar! Como
seria bom brincar! — refletiu com suas lágrimas, no canto, a dolorosa
martirzinha, que até ali só brincara em imaginação com o cuco.
Chegaram as malas e logo:
— Meus brinquedos! —
reclamaram as duas meninas.
Uma criada abriu-as e tirou
os brinquedos.
Que maravilha! Um cavalo de
pau!... Negrinha arregalava os olhos. Nunca imaginara coisa assim tão galante.
Um cavalinho! E mais... Que é aquilo? Uma criancinha de cabelos amarelos... que
falava “mamã”... que dormia...
Era de êxtase o olhar de
Negrinha. Nunca vira uma boneca e nem sequer sabia o nome desse brinquedo. Mas
compreendeu que era uma criança artificial.
— É feita?... — perguntou,
extasiada.
E dominada pelo enlevo, num
momento em que a senhora saiu da sala a providenciar sobre a arrumação das
meninas, Negrinha esqueceu o beliscão,o ovo quente, tudo, e aproximou-se da
criatura de louça. Olhou-a com assombrado encanto, sem jeito, sem ânimo de
pegá-la.
As meninas admiraram-se
daquilo.
— Nunca viu boneca?
— Boneca? — repetiu
Negrinha. — Chama-se Boneca?
Riram-se as fidalgas de
tanta ingenuidade.
— Como é boba! — disseram. —
E você como se chama?
— Negrinha.
As meninas novamente
torceram-se de riso; mas vendo que o êxtase da bobinha perdurava, disseram,
apresentando-lhe a boneca:
— Pegue!
Negrinha olhou para os
lados, ressabiada, como coração aos pinotes. Que ventura, santo Deus! Seria
possível? Depois pegou a boneca. E muito sem jeito, como quem pega o Senhor
menino, sorria para ela e para as meninas, com assustados relanços de olhos
para a porta. Fora de si, literalmente... era como se penetrara no céu e os
anjos a rodeassem, e um filhinho de anjo lhe tivesse vindo adormecer ao colo.
Tamanho foi o seu enlevo que não viu chegar a patroa, já de volta. Dona Inácia
entreparou, feroz, e esteve uns instantes assim, apreciando a cena.
Mas era tal a alegria das
hóspedes ante a surpresa extática de Negrinha, e tão grande a força irradiante
da felicidade desta, que o seu duro coração afinal bambeou. E pela primeira vez
na vida foi mulher. Apiedou-se.
Ao percebê-la na sala
Negrinha havia tremido, passando-lhe num relance pela cabeça a imagem do ovo
quente e hipóteses de castigos ainda piores. E incoercíveis lágrimas de pavor
assomaram-lhe aos olhos.
Falhou tudo isso, porém. O
que sobreveio foi a coisa mais inesperada do mundo — estas palavras, as
primeiras que ela ouviu, doces, na vida:
— Vão todas brincar no
jardim, e vá você também, mas veja lá, hein?
Negrinha ergueu os olhos
para a patroa, olhos ainda de susto e terror. Mas não viu mais a fera antiga.
Compreendeu vagamente e sorriu.
Se alguma vez a gratidão
sorriu na vida, foi naquela surrada carinha...
Varia a pele, a condição,
mas a alma da criança é a mesma — na princesinha e na mendiga. E para ambos é a
boneca o supremo enlevo. Dá a natureza dois momentos divinos à vida da mulher:
o momento da boneca — preparatório —, e o momento dos filhos — definitivo.
Depois disso, está extinta a mulher.
Negrinha, coisa humana,
percebeu nesse dia da boneca que tinha uma alma. Divina eclosão! Surpresa
maravilhosa do mundo que trazia em si e que desabrochava, afinal, como
fulgurante flor de luz. Sentiu-se elevada à altura de ente humano. Cessara de
ser coisa — e doravante ser-lhe-ia impossível viver a vida de coisa. Se não era
coisa! Se sentia! Se vibrava!
Assim foi — e essa
consciência a matou.
Terminadas as férias,
partiram as meninas levando consigo a boneca, e a casa voltou ao ramerrão
habitual. Só não voltou a si Negrinha. Sentia-se outra, inteiramente
transformada.
Dona Inácia, pensativa, já a
não atazanava tanto, e na cozinha uma criada nova, boa de coração,
amenizava-lhe a vida.
Negrinha, não obstante,
caíra numa tristeza infinita. Mal comia e perdera a expressão de susto que
tinha nos olhos. Trazia-os agora nostálgicos, cismarentos.
Aquele dezembro de férias,
luminosa rajada de céu trevas adentro do seu doloroso inferno, envenenara-a.
Brincara ao sol, no jardim.
Brincara!... Acalentara, dias seguidos, a linda boneca loura, tão boa, tão
quieta, a dizer mamã, a cerrar os olhos para dormir. Vivera realizando sonhos
da imaginação. Desabrochara-se de alma.
Morreu na esteirinha rota,
abandonada de todos, como um gato sem dono. Jamais, entretanto, ninguém morreu
com maior beleza. O delírio rodeou-a de bonecas, todas louras, de olhos azuis.
E de anjos... E bonecas e anjos remoinhavam-lhe em torno, numa farândola do
céu. Sentia-se agarrada por aquelas mãozinhas de louça — abraçada, rodopiada.
Veio a tontura; uma névoa
envolveu tudo. E tudo regirou em seguida, confusamente, num disco. Ressoaram
vozes apagadas, longe, e pela última vez o cuco lhe apareceu de boca aberta.
Mas, imóvel, sem rufar as
asas.
Foi-se apagando. O vermelho
da goela desmaiou...
E tudo se esvaiu em trevas.
Depois, vala comum. A terra
papou com indiferença aquela carnezinha de terceira — uma miséria, trinta
quilos mal pesados...
E de Negrinha ficaram no
mundo apenas duas impressões. Uma cômica, na memória das meninas ricas.
— “Lembras-te daquela
bobinha da titia, que nunca vira boneca?”
Outra de saudade, no nó dos
dedos de dona Inácia.
— “Como era boa para um
cocre!...”
Monteiro Lobato, natural de
Taubaté (SP), nasceu em 18/04/1882. É uma das figuras excepcionais das letras
brasileiras. Jornalista, contista, criador de deliciosas histórias para
crianças, suscitador de problemas, ensaísta e homem de ação, encheu com seu
nome um largo período da vida nacional. Com a publicação do livro de contos
"Urupês", em julho de 1918, quando já contava com 36 anos de idade,
chama para o seu talento de escritor a atenção de todo o país. Cita-o Ruy
Barbosa, em discurso, encontrando no seu Jeca Tatu um símbolo da realidade
rural brasileira. Lança-se à indústria editorial, publica livros e mais livros
— "Onda Verde", "Idéias de Jeca Tatu", "Cidades
Mortas", "Negrinha", "Fábulas", "O Choque",
etc. Fracassa como editor, ao lançar a firma Monteiro Lobato & Cia., mas
volta com a Companhia Editora Nacional, ao lado de Octales Marcondes, e
triunfa. Tenta a exploração de petróleo, e acaba na cadeia, perseguido pela
ditadura de Getúlio Vargas. Não só escreve, como traduz sem pausa, dezenas e
dezenas de livros, especialmente de Kipling. Uma vida cheia. E uma grande obra,
que lhe preservará o nome glorioso. Foi um grande homem, um grande brasileiro e
um dos maiores escritores — em todo o mundo — de histórias para crianças. Basta
dizer que, no período de 1925 a 1950 foram vendidos aproximadamente um milhão e
quinhentos mil exemplares de seus livros.
Era, de fato, um ser plural:
escritor precursor do realismo fantástico, escritor de cartas, escritor de
obras infantis, ensaísta, crítico de arte e literatura, pintor, jornalista,
empresário, fazendeiro, advogado, sociólogo, tradutor, diplomata, etc. Faleceu
na cidade de São Paulo (SP), no dia 04 de julho de 1948.
O texto acima foi publicado
originalmente em livro do mesmo nome, tendo sido selecionado por Ítalo Moriconi
e consta de "Os cem melhores contos brasileiros do século", editora
Objetiva — Rio de Janeiro, 2000, pág. 78.
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